MARIN, REPÓRTER DE DESACONTECIMENTOS

Uma aula magna de humildade no jornalismo que vem da roça, com cheiro de titica de galinha, direto do Oeste paranaense para o mundo

Jairo Eduardo – editor do Pitoco

Roberto Marin. Veja só, faltaram um “h” e um “o” para homônimo do poderoso fundador da Rede Globo. Ro­berto Marin também é jornalista, embo­ra não tenha emprestado (ainda) o nome para importante avenida da paulisteia.

As semelhanças com o barão da mí­dia param por aqui. Marin é um repórter roceiro, simplão de tudo.

Quem o enxerga nas roças de Me­dianeira, Santa Helena, Serranópolis, Missal, Céu Azul e outros municípios de abrangência da Lar, terá que se em­penhar para intuir qual profissão exerce.

Em um papo rápido, Marin vai pare­cer um agricultor arguto (na tradução estigmatizada do termo).

Não, aquele senhorzinho de 65 anos é um sujeito letrado, que cultiva uma bela biblioteca, da qual sorveu sabedoria para exercer com modéstia a profissão tida como glamorosa.

Em mais de uma década e meia atu­ando na comunicação da Lar Coopera­tiva, Marin editou 79 edições da revista da empresa, dois livros históricos e conquis­tou muitos amigos na roça.

É de lá que vem a lição para uma geração de jornalistas pálidos, amarelados pelas telas frias e desprovidos de vitamina D, insumo obtido pela exposição ao sol.

Marin faz jornalis­mo cheirando a terra, o estrume da vaca, a titica da galinha. Para entender melhor, leia trecho da carta de des­pedida dele da Lar.

E entenda o sen­tido de uma palavra misteriosa usada pelo veterano das letrinhas: “desacontecimentos”.

O olhar que me ensinou

Desacontecimentos Passei a ser um “repórter” dos desacontecimentos… O que seriam desacontecimentos? Foi dar oportu­nidade ao homem do campo de con­tar a sua história, na sua linguagem, na sua propriedade rural, ao lado de sua família.

Arte de ouvir Não sei quantificar quantas en­trevistas fiz. Sei que em todas elas eu deixei o agricultor sabedor de que ele era uma pessoa importante, tinha uma trajetória e que, penso, ficou satisfeito por ter falado; eu, por ter ouvido, o que de certa forma explica que os desacontecimentos significam registrar o mundo e a vida de pessoas que jamais seriam manchete (pode­riam ser nas notas de falecimento ou numa ocorrência policial), mas elas têm uma história, um trabalho, uma vida, uma família. E o que eu fiz? Simplesmente escutei.

Por que pergunta? Geralmente produtores rurais são bombardeados com perguntas dire­cionadas para se obter uma resposta desejada. – Então, por que pergunta se já sabe a resposta? Alimentei a utopia, para quem vivia na distopia da palavra escrita, ao dar oportuni­dade de expressão aos sonhos pas­sados e presentes, no canto em que viviam. Ao invés de ouvir respostas direcionadas a perguntas que poucos estavam interessados em responder, passei a escutar histórias, formulan­do apenas duas perguntas que faziam parte da minha entrevista.

Palavras brotam A primeira pergunta era mui­to simples: – Me conte sua história (o correto seria conte-me). E as palavras brotavam.

Contavam “causos” do tempo da onça, dos bailes da geringonça, dos pais, dos avós, do namoro, do casamento, dos filhos, da escola, das primeiras lavou­ras, dos bichos, do mosquito borrachu­do, dos carrapatos, das doenças, enfim, contavam a história da comunidade, do que tinham feito e do que faziam. Eu não anotava nada.

Gerar empatia Ouvia apenas. Eles contavam, na lin­guagem deles, a de homens da roça. No poema “Lembranças de um Pioneiro”, escrevi que mesmo com toda moder­nidade, “os caminhos da roça eu não me esqueci”, porque vim da roça e não abandonei o falar da roça. Eu entendia aquele falar, era o que gerava empatia. Sem pressa, em determinado momento pegava de uma agenda e passava a ano­tar as informações básicas.

Brilho nos olhos Era um momento etéreo. Os olhos dos agricultores brilhavam e, como bri­lhavam. Eu os vi. Confesso que vivi esse momento. E por que o brilho nos olhos? Simples. Eles tinham contado histórias, que são importantes para alguém da ci­dade, com as mãos macias, estudado.

Esse alguém era eu, que rabiscava o que tinha achado relevante, com a promessa de a matéria sair na Revista da Lar. Satisfeitos, muitos produtores ponderavam: – O que tu vais escrever de um colono burro que estudou até o terceiro livro? A resposta sempre foi a mesma. – Você é importante, é tua iden­tidade, é a memória, e os teus parentes vão gostar de ler. Depois, era a vez do retrato, a fotografia.

Domingueiras Quase todos trocavam de roupa (dizia-se “a roupa de missa”), pente­avam o cabelo; as mulheres se arru­mavam e demoravam mais. Ruge no rosto, batom e um discreto perfume Dizia: – Fiquem à vontade, vou buscar a melhor pose. E arremata­va, só para brincar: – Não quero foto para santinho de missa de sétimo dia.

A segunda pergunta era: – O que é a vida? Paravam de falar. Olhavam para os lados. Cochichavam. Até re­clamavam, mas respondiam, depois de alguns ensaios. As respostas fo­ram diversas, algumas filosóficas, mas quase todas diziam que a vida era a família.

Ensinar e aprender O olhar de todas as pessoas que tive oportunidade de conversar, pro­vocar, declamar um poema, sugerir um livro, foi um olhar que me sedu­ziu, me possuiu e me ensinou a en­tender que todas as pessoas, mesmo as insensatas e ignorantes, têm algu­ma experiência de vida para contar.

Basta que alguém as escute; eu as escutei, e tenho a convicção de que neste mundo de algoritmos (sim, eu sou um número, mas sou de carne e osso e tenho sentimentos), ainda é possível numa manhã ensolarada sen­tir o leve tocar do vento num rosto nu.

E quando o vento rugir magoado nas rotas dos montes, eu vou lembrar dos amigos que deixei no tempo em que trabalhei na Lar. Vou seguir to­cando em frente, tranquilamente, entre a inquietude e a pressa, lem­brando-me de que há sempre paz no silêncio. É isso. (Revista Pitoco)

Roberto Marin, jornalista roceiro, abril de 2020.

 

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