A pandemia da Covid-19 evidenciou uma fragilidade do Brasil: a alta dependência de insumos importados da China para a fabricação de vacinas e o sucateamento de laboratórios e fábricas usados para produzir imunizantes no país.
Enquanto na década de 1980, o Brasil tinha pelo menos cinco institutos capazes de produzir vacinas, atualmente, há apenas dois em operação: Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e o Instituto Butantan.
E das 17 vacinas atualmente distribuídas por esses dois institutos de pesquisa, só quatro são fabricadas totalmente no Brasil e não dependem da importação do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), como é chamada a matéria-prima para produzir imunizantes.
Esse sucateamento do setor de vacinas para humanos contrasta com os elevados investimentos na fabricação nacional de imunizantes para animais, principalmente gado.
Enquanto o Brasil importa a grande maioria das vacinas usadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mais de 90% das vacinas para gado são fabricadas no país, segundo o Sindan (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal).
“O problema do Brasil é que a gente importa tudo. Nos últimos anos, reduzimos em 50% a capacidade de produção nacional de vacinas. Temos só duas fábricas. No setor veterinário, temos inúmeras fábricas”, diz Ana Paula Fernandes, pesquisadora do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnóstico da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
De fato, existem cerca de 30 fábricas para vacina veterinária —a maioria no Sudeste do país, segundo o Sindan. Trata-se de um mercado que garantiu faturamento de R$ 6,5 bilhões ao setor farmacêutico veterinário e que ajuda a manter a liderança mundial do Brasil na exportação de gado.
“Todo o processo de fabricação, da semente de trabalho do vírus vivo ao envase e distribuição, é feito aqui. Para mais de 90% das vacinas voltadas a gado, o ciclo completo de produção ocorre em território brasileiro”, disse à BBC News Brasil o vice-presidente executivo do Sindan, Emílio Saldanha.
Mas quando foi que o setor de vacinas para humanos deixou de ser prioridade, enquanto a vacinação de gado se desenvolvia?
Da autossuficiência à dependência da China Segundo o fundador e primeiro presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, foi na década de 1980 que o setor de pesquisa e fabricação nacional de vacinas para humanos viveu o auge de investimentos.
“No regime militar, foi implementado o modelo de substituição de importações. Os militares fizeram um esforço para ampliar capacidade produtiva local de insumos farmacêuticos e o pico se deu no final dos anos 1980”, recorda.
Em 1985, o regime militar lançou o Programa de Autossuficiência de Imunobiológicos, com a meta de tornar o Brasil autossuficiente na produção de imunizantes. Recursos do Ministério da Saúde foram transferidos em peso para quatro instituições de pesquisa: Bio-Manguinhos, Instituto Butatan, Fundação Ezequiel Dias e Instituto Vital Brasil.
Em poucos anos, o Brasil passou a fabricar uma série de vacinas em território nacional, como a da tríplice viral, febre amarela, tríplice bacteriana, poliomielite, tuberculose (BCG), e hepatite B.
“Tanto para o Butantan quanto para a Fiocruz os investimentos da década de 1980 foram um marco. O Brasil possuía um parque farmoquímico para produção de IFA”, disse à BBC News Brasil Tiago Rocca, gerente de parcerias estratégicas e novos negócios do Butantan.
Mas a maré logo iria mudar para a indústria de pesquisa em vacinas. A partir de março de 1990, a abertura comercial promovida pelo então presidente Fernando Collor permitiu a entrada maciça de produtos importados e muitas indústrias brasileiras não resistiram, inclusive o setor de imunizantes. Nesse meio tempo, China e Índia despontaram como grandes produtores de insumos farmacêuticos.
“O Brasil passou a importar em larga escala IFA, moléculas pequenas e outras matérias-primas usadas para fazer vacina. O problema é que os investimentos não acompanharam a competitividade e abertura. Atualmente, importamos cerca de 90% dos insumos imunobiológicos”, explica Rocca, do Butantan.
Como consequência da abertura econômica, institutos e fábricas foram fechando as portas, restando apenas Fiocruz e Butantan com capacidade para produzir vacinas de tecnologia nacional.
“A abertura da economia no governo Collor foi feita sem cuidado, sem verificar como os diferentes segmentos seriam afetados. Na indústria farmacêutica, o que fizemos foi secar a capacidade de produção nacional e passar a importar tudo através das multinacionais”, acrescenta Vecina Neto, que é professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Regulamentação mais rígida e necessária foi ‘prego no caixão’ Outro momento importante na trajetória da indústria de vacinas foi a criação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999.
O Brasil passou a adotar um regime mais criterioso para liberação de medicamentos e foram impostas regras para equiparar o Brasil aos padrões internacionais de segurança em qualidade em pesquisa.
Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que essas medidas foram importantes, mas destacam que elas não foram acompanhadas de investimentos para que institutos como Fiocruz e Butatan pudessem atualizar sua infraestrutura e continuar a fabricar vacinas de ponta a ponta no país.
O resultado disso foi que imunizantes que antes eram produzidos no Brasil passaram a ser importados. O Butantan, por exemplo, fabricava a vacina Tríplice Bacteriana Acelular (contra difteria) e a de hepatite B, mas passou a importar esses produtos porque é custoso atualizar as fábricas para que se adequem às exigências regulatórias.
“Nós registramos a patente, detemos a tecnologia, mas precisamos de uma nova fábrica para produzir essas vacinas de acordo com as melhores práticas da Anvisa”, explica Tiago Rocca.
Atualmente, das sete vacinas que o Instituto Butantan fornece só a da gripe é fabricada inteiramente no Brasil, a partir de um acordo de transferência de tecnologia. E das 10 vacinas fornecidas pela Fiocruz, só 4 não dependem da importação de Insumo Farmacêutico Ativo, ou IFA.
Gonzalo Vecina Neto avalia que os governos que se seguiram ao de Collor, inclusive os de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, não tiveram uma visão de longo prazo e também não investiram em pesquisa farmacêutica e de vacinas.
“O boom das commodities estimulou os governos a navegar em águas tranquilas e se fiar na exportação de produtos agrícolas. Por que FHC e Lula não investiram na autossuficiência em vacinas? Falta de visão de longo prazo. Nenhum dos dois tirou o pé do curto prazo, do populismo local, da reeleição no quarto ano.”
“Vale da Morte” Segundo a microbiologista Ana Paula Fernandes, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais, o grande gargalo na indústria nacional de vacinas está na ausência de laboratórios tecnológicos e plantas fabris para viabilizar a transformação da pesquisa em produto final.
“Temos capacidade técnica, pesquisadores de ponta, mas existem gargalos que impedem que as descobertas se transformem em vacina. Temos conhecimento técnico para fazer vacinas como a da Pfizer e Moderna contra a Covid-19, mas não temos matéria-prima, investimentos e fábricas para produzir”, resume.
Esses gargalos são chamados pelos cientistas de “vale da morte”. Isso porque, entre a descoberta científica e o uso desse achado, existe um abismo atualmente intransponível.
Segundo o professor de imunologia da USP Jorge Kalil, faltam laboratórios e plantas fabris que permitam testar a descoberta das universidades em animais e, depois, em seres humanos.
“O que impede que isso aconteça é falta de investimentos. Nós temos uma ciência de excelência no Brasil, mas precisamos atravessar o vale da morte, que é ir da descoberta científica nos laboratórios acadêmicos para a fase final, da industrialização”, diz Kalil, que também é diretor do Laboratório Incor de Imunologia e ex-presidente do Instituto Butantan.
Interesse econômico alimenta vacinas veterinárias Já o setor de vacinas veterinárias conseguiu sobreviver à abertura de mercado e escapou às regulações criteriosas da Anvisa.
A liberação de vacinas e medicamentos para uso animal é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, que impõe regras mais flexíveis, diz o ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto.
Além disso, um amplo e lucrativo mercado privado garante a compra das vacinas para gado, suínos e aves, enquanto o maior comprador de vacinas humanas é o governo federal.
O Brasil é o maior exportador de gado do mundo e a quantidade de bois no território brasileiro equivale ao tamanho da população brasileira. A venda em larga escala de vacinas para uso animal garante que seja mais vantajoso fabricar o produto no Brasil a importar de outros países, até porque o custo de fabricação é menor que o de vacinas para humanos, já que as regras são menos rígidas que as impostas pela Anvisa.
Otto Mozzer, dono da Allegro Biotecnologia, destaca ainda que parte da indústria de vacina animal cresceu na garupa do programa do governo federal de erradicação, até 2026, da febre aftosa — doença altamente contagiosa que pode causar a morte do animal e que provocava grandes prejuízos aos produtores.
“O grande parque tecnológico industrial foi na trilha da produção de vacina contra febre aftosa. Todos captaram recursos para fabricação dessa vacina e foram produzidos, nos últimos 20 anos, mais de R$ 6,2 bilhões de doses aqui no Brasil”, disse Mozzer, que é doutor em biotecnologia pela USP.
Para se ter uma ideia, o Brasil tem cerca de 220 milhões de cabeças de gado, segundo o vice-presidente-executivo do Sindan, Emilio Saldanha. Cada um desses animais, precisa tomar duas doses de vacina contra febre aftosa — uma exigência do Ministério da Agricultura para todos os produtores de gado do país.
“Faz 30 anos que somos autossuficientes nas principais vacinas para rebanho brasileiro. Vacinação é sinônimo de competividade”, destaca Saldanha.
E para que investir em vacina brasileira para humanos? O principal argumento contrário a investir em vacinas nacionais é o de que, atualmente, é mais barato importar produtos da Índia ou China do que construir laboratórios e fábricas para garantir autossuficiência. Atualmente, o déficit na balança comercial brasileira de insumos farmacêuticos é de R$ 2,1 bilhões (dado de 2019), segundo a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).
Como o Brasil passou por mais de 30 anos de desinvestimentos no setor, seria preciso um investimento pesado do poder público para reverter esse cenário.
Por outro lado, a pandemia do coronavírus mostrou os riscos de depender inteiramente da importação de insumos. A demora na entrega de matéria-prima pela China pode significar meses de atraso no cronograma de vacinação da população contra Covid-19.
Além disso, há doenças que existem no Brasil e que não despertam interesse de pesquisa de grandes farmacêuticas estrangeiras, por serem um problema regional.
“Por exemplo, tem um tipo de malária que é comum no Brasil, mas não em outros países. Temos dengue, zika, chikungunya… Fabricar vacinas eficazes contra doenças que predominam aqui é importante para proteger a população”, diz Ana Paula Fernandes, que participa de um projeto nacional de vacina contra Covid-19.
O gerente de parcerias do Butantan, Tiago Rocca, também defende investimentos em tecnologia nacional. “Não é só uma questão de lucro, de custo e de venda. É uma questão estratégica não depender quase inteiramente de importações”, diz.
“Hoje, nós temos uma parceria com uma empresa estrangeira para continuar fornecendo a vacina da Hepatite B. Mas é uma questão estratégica ter a produção nacional, porque todos os habitantes do Brasil precisam tomar e precisam de dose de reforço a cada dez anos. É uma doença que está aí.”
Cientistas brasileiros também argumentam que investir na infraestrutura de fabricação nacional de imunizantes é importante para fazer frente ao coronavírus, especialmente diante de evidências de que as vacinas contra a Covid-19 terão que ser atualizadas constantemente para responder a variantes do vírus.
Butantan assinou contrato de transferência de tecnologia para produzir no país a CoronaVac. E a Fiocruz negocia contrato similar com a Oxford-AstraZeneca. Os dois institutos investiram na atualização das suas fábricas e laboratórios para viabilizar esses acordos.
Enquanto isso, pesquisadores brasileiros tentam angariar recursos para colocar no mercado vacinas feitas com tecnologia 100% nacional.
O grupo de pesquisa da microbiologista Ana Paula Fernandes, da UFMG, já terminou a fase pré-clínica de estudos para produção de uma vacina brasileira contra Covid-19. “Tivemos uma resposta excelente. Usamos camundongos e eles responderam muito bem.”
O professor Jorge Kalil, da USP, tenta desenvolver uma vacina em formato de spray nasal contra Covid-19. Ele também já usou o produto em camundongos e tenta transpor o “vale da morte” para conseguir testar o produto em humanos.
“Se a gente consegue dinheiro para a fase mais fundamental da descoberta, é difícil percorrer o caminho que leva ao desenvolvimento do produto industrializado. Estamos agora negociando parcerias com empresas brasileiras.” (folha.uol.com.br)